IMAGEM DE DEUS E DESCOBERTA DA VOCAÇÃO
Na parábola do bom samaritano, a mesma situação do homem
assaltado e meio morto à beira da estrada fez um apelo a três pessoas
diferentes: sacerdote, levita e samaritano. A resposta não foi a mesma. Imagine
um membro do MST e um arauto de Cristo, confrontados com o mesmo fato: uma
invasão de terra que resultou em duas mortes e quatro feridos. Responderão do
mesmo jeito? Não responderão. Por que? Dependendo da posição social e da imagem
que as pessoas se fazem de Deus, elas reagem diferentemente diante dos apelos
ou da vocação que vêm dos fatos da vida.
Vamos ver como as pessoas e os grupos reagiram diante da
vocação que lhes vinha da situação de fracasso do cativeiro. É para que nós, quando
confrontados com os fracassos e problemas, tanto da nossa história pessoal,
como da história da Brasil, da Igreja, da família, da comunidade, possa
discernir a vocação certa e dar a resposta acertada.
1. O fracasso do cativeiro fazendo apelo à consciência do
povo
O cativeiro destruiu o quadro das referências que tinham
orientado o povo até àquele momento. Os
três grandes sinais ou “sacramentos” que tinham sido a garantia visível da
presença de Deus no meio deles, foram destruídos! O Templo, morada perpétua
de Deus (1Rs 9,3), foi incendiado (2Rs 25,9). A Monarquia, fundada para durar sempre (2Sam 7,16),
já não existia (2Rs 25,7). A Terra,
cuja posse tinha sido garantida para sempre (Gen 13,15), passou a ser a
propriedade dos inimigos, (2Rs 25,12; Jer 39,10; 52,16).
Perdido e sem rumo, provocado pelo fracassos, o povo
procurava uma saída que lhe desse segurança e esperança. O que mais pesava era o sentimento do abandono, misturado
com um complexo de culpa (Is 40,27; 49,14; Lm 1,8.14). Eles pensavam que, por
causa da sua infidelidade, Deus tivesse mudado de atitude e os tivesse
rejeitado para sempre (Sl 77,8-11; 79,5). Ele já não estaria escutando o grito
do povo (Lam 3,8; Sl 22,2-3). Beco sem saída! Eis o lamento do porta-voz do
povo:
"Eu sou o homem que conheceu a dor de perto, sob o
chicote da sua ira. Ele (Deus) me conduziu e me fez andar nas trevas e não na
luz. Ele volve e revolve contra mim a sua mão, o dia todo. Consumiu minha carne
e minha pele, e quebrou os meus ossos. Ao meu redor, armou um cerco de veneno e
amargura, e me fez morar nas trevas como os defuntos, enterrados há muito
tempo. Cercou-me qual muro sem saída, e acorrentado, me prendeu. Clamar ou
gritar não adianta, ele está surdo à minha súplica. .... Fugiu a paz do meu espírito, já não
sei mais o que é ser feliz. Eu digo: "Acabaram-se minhas forças e minha
esperança que vinham de Javé" (Lam 3,1-8.17-18).
A imagem de Deus que transparece nas entrelinhas deste
lamento é a de um carrasco que só quer vingar e machucar. Trágica experiência! Fonte
de desespero! Uma experiência de Deus assim não pode ser fonte de vocação para
ninguém. Fecha qualquer saída e joga todos no desespero. Como sair desta
situação? Como e onde reencontrar Deus? Eram estas as perguntas que agitavam as
consciências e as conversas de muita gente. Era este o apelo, a vocação, que os
provocava. Qual a resposta acertada?
2. As várias respostas ao apelo de Deus
Apareceram várias respostas. Inicialmente, não eram
respostas distintas, separadas umas das outras, mas sim tendências diferentes,
misturadas entre si, sem muita clareza, num ambiente de busca e desencontro.
Exatamente como hoje!
1. A maioria
silenciosa adotou os deuses do império e se acomodou
A
maioria dos exilados se acomodou e começou a freqüentar a religião do império
da Babilônia. Adotaram os ídolos
e o jeito de viver dos grandes. Era a maioria
silenciosa! Hoje também, a maioria silenciosa busca o caminho mais cômodo do
consumismo, a nova religião do império neoliberal com seus templos grandiosos.
2. Zorobabel e Josué queriam reeditar o passado, mas não
conseguiram
Para
eles, o fato de estar fora da própria terra era o mesmo que estar longe de
Deus! A época dos Reis era o modelo a ser imitado. Queriam reconstruir o
passado: o templo, a monarquia e a independência política (Esd 1,2-4; 2,1-2).
Deste grupo eram Zorobabel, Josué, o profeta Ageu e outros. Eles voltaram para
Palestina em 520 aC, depois que
Ciro permitiu o retorno. Hoje, alguns querem de volta da cristandade.
3. Neemias e Esdras: adaptaram o modelo antigo à nova
situação
É o
grupo das pessoas que conseguiram bons empregos e posições vantajosas na nova
pátria, como transparece nas entrelinhas de vários livros (Ne 2,1-9; Esd
7,11-26; Tb 1,12; Es 2,16; 6,10-11; Dn 3,97). Eles achavam que deviam aceitar o
domínio do rei estrangeiro e colaborar com ele (Jer 27,6-8.12.17; 42,10-11). Ao
mesmo tempo, queriam continuar a ser o povo eleito de Deus. Por isso, insistiam
na observância da lei de Deus (Esd 7,26; Ne 8,1-6; 10,29-30) e na pureza da
raça que proibia o contato com os outros povos (Esd 9,1-2). Eles atuavam a
partir de uma posição de privilégio e de um certo poder frente às outras
instituições da convivência humana. O projeto deles tornou-se hegemônico a
partir de 445 aC com a vinda de Neemias como
encarregado do rei da Pérsia para reorganizar o povo judeu ao redor de
Jerusalém. Hoje, em alguns países, a relação igreja-estado às vezes tem
características semelhantes: de um lado, abertura frente o poder civil para
conseguir favores para a Igreja e, de outro lado, insistência no direito da
Igreja de poder viver sua fé publicamente com total liberdade.
4. Discípulos e discípulas de Isaías: movimento de base que
encontrou uma saída
Um outro grupo achava que a solução não era voltar ao
passado nem acomodar-se no presente, nem adaptar-se às exigências do império,
mas sim aprender a ler com outros olhos a nova situação em que se encontravam.
Eles se perguntavam: “O que será que Deus nos quer ensinar e o que ele pede de
nós, através desta situação tão trágica do cativeiro? Qual agora a nossa
vocação” Eles procuravam voltar às origens do povo e reliam as histórias do
passado para encontrar nelas uma
luz que os ajudasse a redescobrir o chamado de Deus naquela terrível ausência. Foi no meio deste grupo dos discípulos de Isaías que
brotou uma nova experiência de Deus, registrada sobretudo nos capítulos 40 a 66
de Isaías. Era um movimento de base, que não chegou a ter um reconhecimento
oficial.
São quatro maneiras diferentes de responder ao mesmo
desafio do momento histórico. Vamos olhar de perto a resposta que foi dada
pelos discípulos e discípulas de Isaías, pois é ela que inspirou e animou a
Jesus.
3. A resposta
dos discípulos e discípulas de Isaías
A nova
imagem de Deus
Como tantos exilados e migrantes de hoje, o único espaço de
uma certa autonomia e liberdade que ainda sobrava para eles lá no cativeiro da
Babilônia era o espaço familiar: o pai, a mãe, o marido, a esposa, um irmão ou
irmã, o mundo pequeno da família, a “casa”. Todo o resto que antes fazia parte
da vida já não existia: a organização mais ampla da tribo, a posse da terra, o
templo, as peregrinações, o culto, o sacrifício, o sacerdócio, a monarquia.
Nada disse tinha sobrado. Ora, foi exatamente nesse espaço reduzido e
enfraquecido da família, da comunidade, da “casa”, que eles reencontraram a
presença de Deus.
As imagens que eles usavam para expressar e transmitir a
nova experiência da presença de Deus na vida refletem bem este ambiente
familiar da casa. Deus é apresentada por eles como Pai (Is 63,16; 64,7), como Mãe (Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13), como Marido (Is 54,4-5; 62,5), como parente
próximo (goêl ou irmão mais velho) (Is
41,14; 43,1). Javé, o Deus que antes estava ligado ao Templo, ao culto oficial,
ao sacerdócio, ao clero, à Monarquia, agora está perto deles, “em casa”; casa
pequena, quebrada e, humanamente falando, sem futuro, mas Casa, e não Templo. Não usaram as imagens
religiosas tradicionais, mas sim as imagens tiradas da vida familiar e
comunitária de cada dia. Eles humanizaram
a imagem de Deus e sacralizaram a vida, a família, a pequena comunidade, como o
espaço do reencontro com Deus. “Realmente, tu és um Deus que se
esconde, Deus de Israel, Deus salvador!” (Is 45,15) Ele se esconde e se abriga
onde antes ninguém o procurava: em
casa, no relacionamento diário
familiar e comunitário, no meio do povo exilado e excluído (Is 57,15)!
Dá para entender que a elite dos chefes e dos sacerdotes
não gostava muito desta maneira de interpretar e comunicar a presença de Deus.
No entanto, aqui está a fonte que suscitou tantas e tantas vocações ao longo
daqueles quatro séculos até à chegada do Novo Testamento, e que orientou a
Jesus na sua missão junto ao povo!
A resposta à vocação: um novo jeito de trabalhar com o povo
Esta nova experiência de Deus fez com que os discípulos e
discípulas de Isaías redescobrissem sua vocação e missão, não mais como um povo
eleito, privilegiado, separado dos outros, mas sim como povo eleito por Deus
para servir a humanidade (Is 42,1-6; 49,1-6;
50,4-9). E lá mesmo no cativeiro, eles começaram a colocar em prática esta sua
vocação ou missão de serviço.
A resposta à vocação se traduz numa nova maneira de trabalhar com o povo, numa
nova pastoral. Eis três características desta nova pastoral:
Acolher o povo com muita ternura
Para um povo que vive machucado e triste, na solidão do
cativeiro, não bastam a imposição de preceitos e as ameaças da lei, não basta
nem mesmo a denúncia profética, para que ele levante a cabeça e comece a
enxergar a situação com esperança renovada. É necessário, antes de tudo, cuidar
das feridas do coração, acolhendo-o com muita ternura e bondade, para que não
morra nele a esperança. Os discípulos e as discípulas de Isaías têm uma
conversa atenciosa, cheia de ternura e consolo, de acolhimento e encorajamento.
As primeiras palavras: “Consolai! Consolai o meu povo!” (Is 40,1) ressoam pelas
páginas do livro inteiro, do começo ao fim (Is 49,13; 51,12). “Eles não gritam
nem apagam a vela que ainda solta um pouco de fumaça” (Is 42,2-3). Ou seja,
machucados, não machucam. Oprimidos pela situação em que se encontram, não
oprimem, mas tratam e acolhem o povo com muito respeito e carinho. Usam uma
linguagem simples, concreta e direta, numa atitude de ternura nunca vista
antes, que funcionava como bálsamo, e dispunha as pessoas para olhar a
realidade com mais objetividade. Eis alguns exemplos: Is 54,7-8; 41,9-10; 41,13-14; 40,1-2; 43,1-5; 46,3-4; 49,14-16; etc.
Era a maneira de os jovens discípulos e discípulas de Isaías assumirem sua
vocação.
Ensinar dialogando em pé de igualdade
Nas entrelinhas dos capítulos 40 a 66,
transparece uma atitude de escuta e de diálogo. Os discípulos e discípulas de
Isaías ensinam dialogando, em pé de igualdade com o povo. Eles conversam, fazem
perguntas, aprendem com o povo, questionam, levam o povo a refletir sobre os
fatos (cf Is 40,12-14.21.25-27; etc.). Este jeito de ensinar é próprio de quem
se considera discípulo e não dono da verdade (Is 50,4-5). Antes de ser “Mater
et Magistra”, a comunidade deve ser “Discípula e Aprendiz”. Um discípulo não
absolutiza seu próprio pensamento, nem impõe suas idéias autoritariamente, não
é clerical, mas sabe ensinar escutando e aprendendo dos outros. Por este seu
jeito de conviver e de tratar com o povo, os discípulos não só falam sobre
Deus, mas também o revelam; comunicam algo do que eles mesmos experimentam e
vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura e diálogo. O povo se dá
conta de que o Deus dos discípulos é diferente do deus da Babilônia, diferente
também da imagem clerical de Deus que eles ainda carregavam na memória, desde
os tempos da monarquia, de antes da destruição do Templo, e que o projeto de
Neemias e Esdras parecia querer impor outra vez. Assim, aos poucos, os olhos se
abrem. O povo começa a perceber algo do novo que estava acontecendo. “Não estão
vendo?”(Is 43,19)
É no período do cativeiro ou logo depois que se começa a
insistir novamente na observância do sábado (Is 56,2.4; 58,13-14; 66,23; cf. Gn
2,2-3). Era para que o povo exilado tivesse ao menos um dia por semana para se
encontrar, partilhar sua fé, louvar a Deus e, assim, refazer as forças e
animar-se mutuamente. É nestas reuniões semanais que eles refrescam a memória
(Is 43,26; 46,9), contam as histórias de Noé (Is 54,9-10), de Abraão e Sara (Is
51,1-2), da Criação (Is 45,18-19; 51,12-13), lembram o Êxodo (Is 43,16-17),
apontam os fatos da política e perguntam: “Quem é que faz tudo isto?" (Is
41,2). Fazem reunião de noite, fora de casa, e perguntam: “Levantem os olhos
para o céu e observem: Quem criou tudo isso?” (Is 40,26). A resposta é sempre a
mesma: "É Javé, o Deus do povo, o nosso Deus!".
Assim, aos poucos, a natureza deixa de ser o santuário dos falsos
deuses; a história já não é mais decidida pelos
opressores do povo; o mundo da política já não é mais o domínio de
Nabucodonosor. Por trás de tudo começam a reaparecer os traços do rosto de
Javé, o Deus do povo. A natureza,
a história e a política deixam de ser estranhos e hostis ao
povo e tornam-se aliados dos pobres na sua caminhada como Servo de Deus e “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6).
Diante desta presença avassaladora de Deus no mundo, na vida, na história, na
política, no próprio povo, os discípulos convocam o povo: "Cegos, olhem!
Surdos, ouçam!" (Is 42,18). "Não estão vendo?" (Is 43,19).
Agora, já não é a perseguição que enfraquece a fé, mas sim
a fé renovada e esclarecida que enfraquece o poder dos poderosos. A face de
Deus reaparece na vida. O povo, animado por esta Boa Notícia, desperta (Is
51,9.17; 52,1), se põe de pé (Is 60,1), começa a cantar (Is 42,10; 49,13; 54,1;
61,10; 63,7) e a resistir (Is 48,20).
Hoje vivemos uma situação semelhante. Grande parte da
humanidade vive num terrível cativeiro, desacreditou da fé que recebeu dos pais
e adotou a religião do império que é o consumismo. Surgem muitos grupos para
reagir em contrário e reafirmar a fé. Mas nem todos pensam e agem na mesma
direção. Quais as direções em que as pessoas e os grupos procuram responder ao
apelo que lhes vem desta situação? Com qual das tendências você se identifica
mais e em qual delas você procura viver e assumir sua vocação?
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Perguntas para ajudar na reflexão e na assimilação do assunto: 1. O que mais chamou sua atenção nesta reflexão sobre a imagem de Deus e a descoberta da vocação? Por que?
2. Qual das quatro respostas predomina hoje na Igreja? Por que?
3. Com qual das quatro respostas você mais se identifica?
* com a maioria silenciosa que se acomoda e adota os costumes do império?
* com os que querem voltar ao passado? (Zorobabel e Josué)
* com os que procuram unir os favores e privilégios do império com as exigências da missão do povo de Deus? (Esdras e Neemias)
* com os que querem descobrir os apelos de Deus na realidade de hoje à luz do que Deus fez no passado? (Discípulos e discípulas de Isaías)
CESEP,
CURSO DO VERÃO, 14
a 16 de
janeiro de 2008
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