AS RESISTÊNCIAS À VOCAÇÃO
Vamos ver três casos de resistência à vocação: Abraão e Sara resistem porque não conseguem crer na
vocação e, por isso, apresentam caminhos alternativos. Moisés resiste porque tem medo da vocação e
não quer comprometer-se. Eliasresiste
porque confunde o Deus que chama com a imagem que ele mesmo se fazia de Deus e,
por isso, sem se dar conta, busca a resposta numa direção errada. São três
casos de vocação de pessoas que viveram antes de nós. São, ao mesmo tempo,
arquétipos, modelos, símbolos do que acontece ou pode acontecer com todos nós.
São espelhos, nos quais reconhecemos algo de nós mesmos. Eles nos ajudam a
entender melhor o que se passa dentro de nós.
1. O Chamado de Abraão e Sara
1.1 Situando o chamado
Século VI antes de Cristo. O povo estava no cativeiro da
Babilônia. A política expansionista do império de Nabucodonosor, rei da
Babilônia, destruiu Jerusalém e arrasou com o Templo. Matou o rei e acabou com
a independência política do reino de Judá. Isto foi no mês de agosto do ano
587 antes de Cristo. As grandes promessas do passado não se realizaram. O povo
estava de volta na mesma terra de onde, 1300 anos antes, Abraão e Sara tinham
saído para a Palestina em busca da Terra Prometida. O povo estava na escuridão
(Lam 3,2-6), sentia-se injustiçado por Deus (Is 40,27; 49,14), tinha perdido a
auto-estima, achava que sua vida já não tinha valor nenhum e que todo o seu
esforço não adiantava para nada (Is 49,4). Vivia oprimido e disperso, sem
encontrar os sinais da presença de Deus na vida (Sl 77,8-11). Muitos tinham se
acomodado e diziam: “Deus se esqueceu de nós” (Is 40,27). Abandonaram Javé e
começaram a crer nos deuses do império da Babilônia que lhes pareciam mais
fortes!.
E no entanto, foi a esse povo desanimado e sem futuro que
Deus estava chamando para ser Luz das nações (Is 42,6; 49,6). Sua vocação era
anunciar a justiça (Is 42,6), libertar os oprimidos (Is 61,1), unir as tribos
de Jacó (Is 49,5-6), levar a mensagem de Deus até os confins da terra (Is
49,6). Difícil crer num chamado assim! –“Quem
somos nós para realizar uma vocação assim!” De fato, a maioria nem lhe dava
atenção. Dava risada.
Mas um grupo pequeno, discípulos e discípulas de Isaías,
começou a lembrar e aprofundar a história de Abraão e Sara. Em vez de
desanimar, diziam o contrário: “É agora que nós temos que ser Abraão e Sara!
Esta é a nossa vocação!” E repetiam ao povo:
“Vocês que buscam a justiça e procuram a Deus. Olhem para a
rocha de onde foram talhados, olhem para a pedreira de ontem foram extraídos.
Olhem para Abraão, seu pai, e para Sara, que os deu à luz! Quando os chamei,
eles eram um só, mas se multiplicaram por causa da minha bênção!” (Is 51,1-2)
Lembrando a história antiga de Abraão e Sara, em cuja terra
estavam exilados, em vez de desanimar, os discípulos de Isaías se enchiam de
esperança: “Nossos pais Abraão e Sara conseguiram! Nós também vamos conseguir!”
Hoje acontece o mesmo. Muitos se acomodam, mas outros dizem o contrário: “É
agora que nós temos que ser Zumbi! Tiradentes! Santos Dias! Oscar Romero! Padre
Josimo! Irmã Doroty! Esta é a nossa vocação!”
Para ajudar o povo do cativeiro a descobrir e assumir esta
sua vocação, os discípulos de Isaías começaram a contar novamente a história de
Abraão e Sara, mas a contavam de tal maneira que o povo pudesse descobrir nela
sua própria vocação e a maneira de como realizá-la. As narrações sobre Abraão e Sara,
conservadas no livro de Gênesis, refletem não só a história do casal no
longínquo passado de 1800 antes de Cristo, mas também, como num espelho, a
situação difícil e sem horizonte do povo no cativeiro da Babilônia. A maneira
dramática como é narrada a história de Abraão e Sara deixa transparecer como
era difícil para o povo do cativeiro crer na vocação que lhe vinha de Deus e
sugere, ao mesmo tempo, como ele devia fazer para crer na vocação e assumi-la.
Estas narrações também são espelho para nós hoje refletirmos sobre a nossa
vocação, sobre o nosso chamado.
1.2. O chamado
Eis como começa o chamado para sermos Abraão e Sara, para
refazermos a história:
Javé disse a Abrão: "Saia de sua terra, do meio de
seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Eu
farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de
modo que se torne uma bênção. Abençoarei os que abençoarem você e amaldiçoarei
aqueles que o amaldiçoarem. Em você, todas as famílias da terra serão
abençoadas". Abrão partiu conforme lhe dissera Javé. E Ló partiu com ele.
Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. Abrão levou consigo sua
mulher Sarai, seu sobrinho Ló, todos os bens que possuíam e os escravos que
haviam adquirido em Harã. Partiram para a terra de Canaã e aí
chegaram. (Gn 12,1-5)
A promessa de ser pai de um povo e fonte de bênção para
toda a humanidade é uma vocação bonita que atrai. Vocação importante de grande
alcance. Mas a condição para poder ser pai de um povo é ter ao menos um filho.
Abraão já tinha 75 anos e sua esposa Sara era estéril e avançada em idade. A condição
para Abraão crer na sua vocação era crer em Sara, crer que Sara pudesse ter um
filho. Difícil crer numa promessa assim! Era mais fácil crer no projeto que os
dois iam elaborando como possível alternativa para uma promessa aparentemente
impossível.
1.3. As propostas alternativas
Foram três as propostas alternativas que os dois
elaboraram. Mas também foram três as pancadas que levaram, três os impasses que
enfrentaram, três os fracassos que sofreram, até renascer e descobrir o
caminho. Tem gente que leva dez pancadas, outros caem vinte vezes até aprender.
Outros não levam pancada nenhuma nem caem, porque já estão deitados no chão,
são humildes. Vejamos as propostas alternativas de Abraão e Sara:
1.3.1. A primeira proposta alternativa à
promessa de Deus: Eliezer
Humanamente falando, a vocação de Deus ultrapassava as
possibilidades reais do casal. Abraão já era velho e Sara não podia ter nenê. A
primeira proposta de Abraão para tentar uma saída foi a de apresentar Eliezer,
seu empregado, como substituto de um (im)possível filho (Gn 15,1-6). Conforme
as leis da época, Abraão poderia adotá-lo como filho. O filho de Eliezer seria
neto de Abraão, e a promessa de ser pai de um povo estaria garantida, a vocação
estaria realizada. No fundo, Abraão não acreditava na promessa. Mas Deus disse:
“Eliezer, não! Vai ter que ser filho seu!” (cf. Gn 15,4). É a primeira
rasteira. Tudo voltou à estaca zero!
3.2. A segunda proposta alternativa à
promessa de Deus: Ismael
Para poder crer na sua vocação, Abraão devia crer em Sara,
e Sara devia crer em Abraão. Não basta crer em Deus abstratamente. A
vocação está ligada a pessoas concretas. A segunda proposta foi a de apresentar
Agar, escrava de Sara, para ser mãe do futuro filho (Gn 16,1-16). Novamente, os
dois não deram conta de crer em si mesmos nem na vocação. Achavam que a promessa
só poderia realizar-se através de Agar, isto é, através do projeto que eles
tinham imaginado. Nasceu Ismael, filho de Abraão e Agar. O nome Ismael
significa “Deus ouviu!” Através de Ismael, filho de Abraão, o povo estava
garantido. Novamente, vem a resposta de Deus: “Ismael, não! Terá que ser filho
de Sara!” (Gn 17,15-19). É a segunda rasteira. E novamente, tudo voltou à
estaca zero!
1.3.2. A terceira proposta alternativa à
promessa de Deus: Isaque
Abraão recebeu a visita de três peregrinos e os recebeu com
muita hospitalidade (Gn 18,1-8). Os três diziam que Sara ia ter nenê no ano
seguinte. Sara riu (Gn 18,9-15). Abraão também riu (Gn 17,17). Todos rimos,
porque não acreditamos em nós mesmos, nem na vocação. Só acreditamos no que nós
fazemos para Deus, e não no que Deus é capaz de fazer por nós. Mas finalmente,
Abraão consegue crer em Sara, e nasce o filho que recebe o nome de Isaque, o que significa Risada (Gn 21,1-7). De Deus não se ri.
Falou, está falado! Podes crer! O nascimento de Isaque clareou o horizonte.
Finalmente, o povo estava garantido, a vocação estava realizada. A bênção
prometida ia poder irradiar para todas as nações da terra. Mas aqui acontece
uma coisa muito sutil. Agora que Isaque nasceu, a esperança de Abraão tem um
fundamento concreto e palpável: o filho. E imperceptivelmente o fundamento da
esperança passa de Deus que oferece o dom, para o dom oferecido por Deus. E aí
a palavra de Deus chega até Abraão: “Vai
sacrificar o teu filho Isaque no lugar que eu te mostrar!” (Gn 22,1-2). É a terceira rasteira.
Estaca zero de novo. Tudo voltou para antes do começo.
1.3.4 A resposta final à promessa de Deus: a
entrega total
Desta vez, Abraão não discute, não diz nada. Ele é
obediência muda. Apenas age (Gn 22,3-10). Não se fica sabendo o que ele pensa.
O texto não informa. Cada um de nós, lendo o texto e confrontando sua atitude
com a de Abraão, deve preencher a informação que falta no texto. No último
momento, Deus manda Abraão parar. Não pode sacrificar o filho (Gn 22,11-19).
Basta a obediência, interpretada pela carta aos hebreus da seguinte maneira: “Abraão
acreditava que Deus é capaz de tirar vida da própria morte”, e acrescenta: “Isso é um símbolo para nós” (Hb 11,17-19). “Abraão acreditou em
Deus e isto lhe foi imputado como Justiça, e ele foi chamado amigo de Deus” (Tg
2,23; Rom 4,3; Gn 15,6).
“Isso é um símbolo para nós” (Hb 11,19). Símbolo, modelo,
arquétipo! De que maneira? Poderíamos continuar o comentário da carta aos
hebreus dizendo: Todos nós, casados ou solteiros, todos e todas temos um
Isaque, do qual não abrimos mão, que consideramos o fundamento da nossa vida, e
sem o qual não poderíamos imaginar nossa vida. Chegará o dia em que Deus (a
vida) pedirá a mesma coisa: Sacrifique esse seu Isaque, para que a esperança
seja colocada em Deus, só nele!
Responder à vocação, comprometer-se de fato, é um processo,
que ocupa a vida inteira. É fruto de lenta e dolorosa purificação. É como
descascar uma cebola. Você tira uma casca, e terá outra casca para tirar. Você
grita: “Pare! É o miolo!” E não é o miolo, é casca. Cebola não tem miolo. Só
tem casca. E enquanto descasca a cebola você chora. Até descobrir que não temos
miolo. Só temos casca, pois não fomos feitos para nós mesmos, mas para Deus e
para os outros.
2. O chamado de Moisés
2.1. Situando o chamado
Grande parte dos livros de Gênesis e Êxodo foi escrita na
época do cativeiro ou logo depois. As longas histórias dos patriarcas e
matriarcas, do êxodo e dos quarenta anos no deserto eram narradas e foram
escritas para ajudar o povo do cativeiro a redescobrir sua missão como povo de Deus. É com esta
finalidade que o livro do Êxodo narra a história da vocação de Moisés.
O diálogo do chamado entre Deus e Moisés se prolonga por
vários capítulos. É o diálogo do povo do cativeiro com Deus, é o diálogo de
todos nós. Nele aparecem as resistências, os medos, os pretextos reais ou
imaginários que inventamos para poder escapar da vocação. O diálogo entre Deus
e Moisés é um espelho do diálogo que nós travamos com a realidade que nos desafia,
com a consciência que nos incomoda, com Deus que nos chama.
Quando as coisas acontecem, a gente nem sempre percebe logo
todo o seu significado. Não percebe nem entende logo o apelo ou a vocação de
Deus que existe dentro dos fatos, e pode até dar uma resposta errada. Jeremias,
por exemplo, ficava devendo a resposta diante da situação de injustiça que se
alastrava no país e que o deixava perplexo (Jr 12,1-3). Moisés sentiu um
chamado diante do maltrato do seu povo, mas não deu a resposta certa. Sem
refletir, matou um egípcio e teve que fugir (Ex 2,11-15). Demorou quarenta anos
(cf. At 7,23.30; Ex 7,7) até ele sentir de novo o chamado vindo do povo (Ex
3,7-10). O claro e o escuro convivem na pessoa chamada. A Palavra que chama é,
ao mesmo tempo, fonte de alegria e de angústia (Jer 15,15-16; 20,7-18).
A raiz desta contradição aparente está não só nas
contradições da vida e da situação social, mas também na natureza do chamado
que vem de Deus. A certeza que a experiência de Deus nos transmite é aceita na
fé e nem sempre se traduz em certeza humana de nível psicológico. A certeza que
Deus comunica é uma só: "Va!
Estou com você!" (Jr
1,8; Ex 3,12). Ela não faz a pessoa chamada ficar mais inteligente ou mais
perspicaz, não muda o seu caráter, nem aumenta o grau do seu conhecimento. Ela
é como a luz do sol que de repente ilumina tudo, transformando tudo, sem mudar
nada. Ela ajuda o chamado a relativizar tudo em função do único absoluto que é
Deus e a vida do povo, ambos fonte da sua vocação e missão.
2.2. O chamado
É no contexto deste diálogo, que a Bíblia, em seis
versículos (Ex 3,10-15), explica o significado do nome JAVÉ como sendo o fundamento último da
nossa vocação. Estes seis versos têm uma densidade teológica muito grande.
Refletem a nova experiência de Deus que o povo foi adquirindo naqueles anos
difíceis do cativeiro. Explicam a importância do nome JAVÉ para a aceitação e realização da
vocação que recebemos. Em hebraico, o nome JAVÉ é escrito com estas quatro letras JHWH. Eis em gráfico esquemático o
texto abreviado de Êxodo 3,10-15:
Eu te envio a Faraó para fazer
sair meu povo (Ex 3,10)
Quem sou eu para ir ao faraó? (Ex
3,11)
Va! Estou com você! (Ex
3,12)
O povo vai perguntar: Qual o
seu nome? (Ex
3,13)
Estou que estou! (Ex
3,14)
Assim dirás: Estou me mandou. (Ex
3,14)
Assim dirás: Está me mandou. (Ex
3,15).
Este é o meu nome para sempre (Ex
3,15)
Assim serei invocado de geração em
geração. (Ex 3,15)
Reafirma a expressão anterior: Estou com você
Estou repete e abrevia Estou que Estou
Está em hebraico se escreve JHWH ou JHJH
O nome é JHWH, o que significa Estou com você
O texto utiliza um jogo de palavras para comunicar o
significado profundo do nome Javé, JHWH. Este nome é muito antigo de origem
desconhecida, mas no diálogo de Deus com Moisés o nome antigo é associado com a
promessa divinaEstou com você. Moisés não crê nesta promessa. Por
isso, repetindo o mesmo verbo Deus reafirma a promessa e diz: Estou que Estou. Ou seja:
“Certissimamente estou com você, Moisés! Disso você não pode duvidar”. Em
seguida, Deus abrevia a mesma expressão para sua forma reduzida e diz Estou. No fim, o texto
passa da primeira pessoa singular do verbo (Estou) para a terceira pessoa do mesmo verbo
e diz Está. Em hebraico, a terceira pessoa
singular do verbo estar se escreveJHJH ou, às vezes, JHWH, o que é igual ao nome de
Deus. Assim, o nome JHWH é explicada aqui como sendo a
afirmação categórica da parte de Deus de que Ele está sempre conosco: Estou com você. E
termina dizendo que é sob este nome JHWH que Ele quer ser invocado, de geração em geração. Deus já não quer ter outro nome, a não ser
este: JHWH ou JAVÉ, que significa: Estou com você, Estou que Estou, Tô que Tô, Ele está no meio de nós, Deus conosco, Emanuel!
O nome é a expressão do compromisso que Deus assumiu com o seu povo de estar
sempre no meio dele para libertá-lo da opressão.
2.3. As resistências
O diálogo entre Deus e Moisés (de Ex 3,1 a 4,18) é o diálogo de todos nós. Moisés
resiste à vocação porque tem medo. Mas ele não fala claramente. Disfarça o medo
atrás de outros motivos e pretextos. Mas cada vez de novo, Deus desfaz a
racionalização e desmascara o pretexto.
2.3.1.Primeiro pretexto: humildade: “Quem
sou eu?”
Moisés apresenta humildade para esconder o medo: Quem sou eu para ir ao faraó? Deus poderia ter respondido:
“Não, Moisés! Você é capaz. Você se formou na escola do faraó. Você tem
diploma! Tem capacidade, poder e formação suficientes!” (cf. Ex 11,3; At 7,22).
Mas Deus não responde ao pretexto. Ele vai direto ao motivo verdadeiro que era
o medo, e diz: “Estou com
você!” Aqui, nestas três
palavras Moisés recebe a
confirmação básica da sua vocação. Deus não oferece dinheiro nem armas, nem
diploma. Apenas diz: “Va!
Estou com você!” Nada
mais. Não existe uma garantia mágica que me dê certeza sensível de que Deus
está comigo. O único acesso a Deus é a entrega total na fé. É crer que ele está
conosco, comigo! Se eu tiver a coragem de me entregar e de deixar Deus ser Deus
na minha vida, poderei ter a certeza absoluta da presença libertadora de Deus
na minha vida.
2.3.2.Segundo pretexto: ignorância: “Qual o
nome?”
Moisés não se dá por vencido, e busca um outro pretexto.
Ele imagina que o povo vai perguntar pelo nome de Deus. Este segundo motivo é
real, tem fundamento. Pois eles já estavam 400 anos no Egito e Deus nunca tinha
mostrado a sua presença. Deixou que sofressem por quatro séculos! E agora de
repente aparece Moisés dizendo que Deus o enviou para libertar o povo. Para o
povo Deus já não tinha nome, já não existia, não representava mais nada. A pergunta
pelo nome também revela o desejo de poder manipular a divindade através do uso
mágico do nome.
Na realidade, o problema não era o nome de Deus, mas era o
próprio Moisés que não conseguia crer na promessa divina Estou com você! Novamente, a resposta de
Deus não se dirige ao pretexto do nome inventado por Moisés, pois Deus não
responde: “Meu nome é Javé”. Ele se dirige ao pretexto, à falta de fé e de
confiança de Moisés. Dizendo Estou
que Estou, Deus simplesmente está repetindo o que já havia dito anteriormente: “Estou com você!” Tô que Tô! Ou seja, ele reafirma de maneira
categórica: ”Certissimamente estou com você!” Em seguida, abreviando a mesma
expressão, ele diz: “Estou me mandou”. Quando Deus fala de si
mesmo ele usa a primeira pessoa singular e diz “Estou”. Quando nós
falamos a respeito de Deus, usamos a terceira pessoa singular e dizemos: “Está”. Em hebraico a
palavra Está se escreve JHJH ou JHWH. O nome antigo
recebe aqui um significado novo de grande alcança. A certeza de fé que o nome
Javé comunica à toda pessoa chamada é esta: “Certissimamente estou com você!”
Esta é a certeza maior, o centro da nossa fé, o eixo da Bíblia. Só no Antigo
Testamento o nome Javé aparece mais de 7000 vezes. Cantado e contado, em prosa
e verso, de mil maneiras , em todas as tonalidades e formas literárias.
2.3.3.Terceiro pretexto: a falta de fé dos
outros: “Não vão crer em mim!”
Mas Moisés (o povo do cativeiro, todos nós) não está
convencido e vem com outra dificuldade: “E se não acreditarem em mim, o que é
que vou fazer?” (cf. Ex 4,1). Moisés esconde o medo e a falta de fé atrás da
pretensa falta de fé do povo: “O povo não vai acreditar em mim!” Na realidade,
quem não acreditava, não era o povo, mas sim o próprio Moisés. Em resposta,
Deus o faz realizar três sinais milagrosos: mudar o bastão em serpente (Ex
4,2-5), fazer a mão ficar cheia de lepra (Ex 4,6-8) e mudar a água do rio em
sangue (Ex 4,9). Trata-se de histórias bem populares para mostrar a Moisés que
ele não podia ter esse pretexto para escapar da vocação. Era para ajudá-lo a
crer no chamado.
2.3.4.Quarto pretexto: incapacidade física:
“Sou gago, não sei falar”.
Moisés inventa outra dificuldade: “Meu Senhor, eu não tenho
facilidade para falar!” (Ex 4,10; 6,30). Deus desfaz o argumento, pois ele é o
criador da boca dos homens (Ex 4,11-12). Não tem cabimento inventar este
pretexto do defeito no falar junto ao Criador da boca dos homens!
2.3.5.Motivo verdadeiro: “Não quero, mande
um outro!”
Moisés insiste: “Não, meu Senhor, mande a quem quiser!” (Ex
4,13). Ou seja, mande a quem quiser, mas não a mim. Aqui Moisés falou claro.
Deixou de esconder-se atrás de pretextos e refúgios e, finalmente, disse aquilo
que estava no fundo da sua alma: “Não quero! Mande um outro!” E Deus também
falou claro expressando novamente a sua vontade com relação à missão de Moisés:
E você vai! Pode levar Aarão com você, que tem língua boa para falar! (Ex
4,14-17; 7,1-2).
2.3.6.A resposta final de Moisés: aceitou a
vocação
Moisés aceitou a vontade de Deus, foi para casa e disse ao
sogro: “Vou voltar para o Egito para ver se meus irmãos ainda vivem”. O sogro
respondeu: “Vai em paz!” (Ex 4,18).
O que teria acontecido se Moisés não tivesse ido? Talvez
tivesse sido um bom executivo do faraó, um devoto fiel do Deus Rá, divindade
suprema do sistema piramidal do Egito. Talvez tivesse recebido, depois da sua
morte, uma pequena pirâmide como sepultura, e os arqueólogos do século XXI
talvez o descobrissem, mas nós não estaríamos aqui para participar deste curso
do CESEP. A história teria
tomado um outro rumo.
3. O chamado de Elias
3.1. Situando o chamado
Século VI antes de Cristo. O povo está no cativeiro da
Babilônia e tenta reler as
grandes figuras do passado para encontrar nelas algumas luz para clarear a
escuridão em que se encontravam. Uma luz foi encontrada na releitura da
história do profeta Elias, que viveu no século IX antes de Cristo no tempo do
rei Acab e da rainha Jezabel (cf. 1Rs 17
a 21). Eles olhavam não só o lado
exterior e grandioso deste grande profeta, mas também e sobretudo o lado
interior e escondido das suas crises e dúvidas. O estado de depressão em que Elias ficou ao fugir diante da ameaça da
rainha Jezabel era um espelho da situação deles mesmos no cativeiro e de muitos
de nós:
“Elias sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte,
dizendo: "Chega, Javé! Tira a minha vida, porque não sou melhor que meus
pais". Deitou-se debaixo da árvore e dormiu. Então um anjo o tocou e lhe
disse: "Levante-se e coma". Elias abriu os olhos e viu bem perto da
cabeça um pão assado sobre pedras quentes, e uma jarra de água. Comeu, bebeu e
deitou-se outra vez”. (1Rs 19,2-6)
Elias só quer comer, beber e dormir. Como muitos dos
exilados na Babilônia, Elias tinha perdido o sentido da vida. O anjo voltou uma
segunda vez e, finalmente, Elias desperta, reencontra a força e caminha,
quarenta dias e quarenta noites, até chegar no Monte Horeb (1Rs 19,4-8), onde,
séculos antes, naquele mesmo lugar, havia nascido o povo de Deus (Ex 19,1-8).
Elias volta às raízes! Era esta a caminhada que o povo do cativeiro devia
fazer: voltar às raízes para poder redescobrir e reabastecer a vocação! Hoje
existem muitos anjos e anjas a bater na porta do nosso coração para nos acordar
e fazer assumir a vocação.
No Monte Horeb, Deus o interpela:
“Elias, que fazes aqui?” Ele responde: “Eu
me consumo de zelo pela causa do Senhor, pois os filhos de Israel abandonaram a
aliança, derrubaram os altares e mataram os profetas. Fiquei só eu e até a mim
eles querem matar!” (1Rs
19,10.14).
Existe uma contradição entre o discurso e a prática.
Conforme o discurso Elias é o único que sobrou; mas na prática havia sete mil
que não tinham dobrado o joelho diante de Baal (1Rs 19,18). Conforme o discurso
Elias está cheio de zelo; mas a prática mostra um homem medroso que foge (1Rs
19,3). Conforme o discurso ele sabe analisar o fracasso da nação; mas na
prática não sabe analisar o seu próprio fracasso, pois nem percebe a presença
do anjo.
3.2. O chamado
O olhar de Elias estava perturbado por algum defeito que o
impedia de avaliar a situação com objetividade e de perceber a vocação de Deus.
Não é que ele tivesse perdido a fé, mas já não sabia como enfrentar a realidade
nova com a fé antiga. Havia algo de comum entre Elias e seus perseguidores:
ambos matavam em nome de Deus! Foi em nome de deus (Javé) que Elias matou os
450 profetas de Baal (1Rs 18,40). Foi em nome de deus (Baal) que Jezabel matou
os profetas de Javé. Havia algo de errado na imagem de Deus que animava Elias
na sua luta contra Baal. Por isso, seu olhar estava perturbado, incapaz de
avaliar a situação com objetividade.
Como descobrir os enganos que nos impedem de perceber a
vocação, o chamado de Deus? Qual a imagem de Deus que deveria estar hoje em
nós? Esta era e continua sendo a
pergunta fundamental. A resposta é dada em seguida na história da Brisa Leve.
3.3.Descobrir os enganos, os caminhos
errados
Elias recebe a ordem: “Saia
e fique no alto da montanha, diante de Javé, pois Javé vai passar!” (1Rs
19,11). Elias sai da gruta e se prepara para o encontro com Deus. Momento
solene! No passado, naquela mesma Montanha, Deus manifestara sua presença no
furacão, no terremoto e no fogo (Ex 19,16). Estes sinais tradicionais da
presença de Deus eram os critérios que orientavam Elias na sua busca. Mas
acontece o inesperado: Deus já não está no furacão, nem no terremoto, nem mesmo
no fogo que, pouco antes, lá no Monte Carmelo, havia sido o grande sinal da
presença divina a queimar o sacrifício diante de todo o povo (1Rs 18,38).
Parece até um refrão que chama a atenção: “Javé não estava no furacão!” – “Javé
não estava no terremoto!” – “Javé não estava no fogo!” (1Rs 19,11-12) Os sinais
tradicionais da presença de Deus eram lâmpadas apagadas. Bonitas para ver, mas
sem luz! Deixaram Elias no escuro! Elias vivia no passado! Deus já não era como
ele, Elias, e tantos outros no cativeiro o imaginavam e desejavam.
É a desintegração do mundo de Elias: espelho da
desintegração da vida do povo no cativeiro depois que Nabucodonosor mandara
destruir os sinais tradicionais da presença de Deus: o templo, o rei, a posse
da terra. Caiu tudo! A imagem que Elias (o povo do cativeiro) tinha de Deus
quebrou em mil pedaços. É o silêncio de Deus! Na língua hebraica, este
silêncio, é expresso com as seguintes palavras: “voz de calmaria suave”, (qôl
demamáh daqqáh). As traduções costumam dizer: “Murmúrio de uma brisa suave” Mas
a palavra hebraica, usada para indicar a calmaria, vem da raiz DMH, que significa parar, ficar imóvel, emudecer. O “murmúrio de uma brisa suave”, que veio depois
do furacão, terremoto e fogo, indica uma experiência, que, como um golpe suave
e inesperado, faz a pessoa ficar calada, cria nela um vazio e, assim, a dispõe
para escutar. É puxão de orelha, tapa na cara! Mesmo dado com suavidade, não
deixa de ser tapa! Tapa que desperta, quebra a ilusão irreal e faz a pessoa
colocar o pé no chão. Na realidade, a brisa
suave, o tapa na cara, era o próprio exílio que tinha destruído tudo e
obrigava o povo a uma conversão radical.
3.4.A resposta final de Elias
Elias cobre o rosto com o manto (1Rs 19,13). Sinal de que
tinha descoberto a presença do apelo de Deus naquilo que parecia ser a sua
ausência! Despertou! Aprendeu a lição! A situação de derrota, de morte e de
secularização em que se encontrava o povo no cativeiro é percebida por ele como
sendo o momento e o lugar onde Deus o atinge. A escuridão iluminou-se por
dentro e a noite ficou mais clara que o dia (Sl 139,12). Deus se fez presente
na ausência para além de todas as representações e imagens! Escuridão luminosa!
Não é a luz no fim do túnel, mas sim a luz que já existia na escuridão do
próprio túnel e que Elias não enxergava. É uma luz diferente.
A experiência de Deus na Brisa
Leve dá olhos novos e produz
uma mudança radical. Elias descobre que não é ele, Elias, que defende a Deus,
mas é Deus quem defende a Elias. É
a sua conversão e libertação! Reencontrando-se com Deus,
encontrou-se consigo mesmo e com a sua missão. Descobriu sua vocação lá, onde pensava que Deus não tivesse
nada a dizer-lhe! Imediatamente, ele parte para cumprir as ordens de Deus. Uma
delas é ungir Eliseu como profeta em seu lugar (1Rs 19,16). Renasce a profecia!
A luta pela justiça renasce da experiência da gratuidade.
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Perguntas para ajudar na reflexão e na assimilação do assunto: 1. O que mais chamou sua atenção na vocação de Sara e Abraão, de Moisés e de Elias? Por que?
2. O que mais atrapalha a você na realização da sua vocação:
* a falta de fé ou de confiança? (Abraão e Sara)
* o medo? (Moisés)
* idéia errada da vocação e de Deus? (Elias)
3 Qual o tapa na cara de que hoje estamos precisando ou que já estamos recebendo e ainda não percebemos?
4. Quais as idéias erradas sobre Deus que hoje nos desviam do caminho e nos impedem de descobrir nossa vocação?
CESEP, CURSO DO VERÃO, 14 a 16 de janeiro de 2008
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