A DESCOBERTA DA VOCAÇÃO DA HUMANIDADE
1. O fracasso da observância da Lei de Deus destruiu a raiz
da fé
No êxodo foi concluída a aliança entre Deus e o povo. Deus
tinha libertado o povo do Egito e disse:
“Vocês viram o que eu fiz aos egípcios e como carreguei
vocês sobre asas de águia e os trouxe até mim. Portanto, se me obedecerem e
observarem a minha aliança, vocês serão minha propriedade especial entre todos
os povos, porque a terra toda pertence a mim. Vocês serão para mim um reino de
sacerdotes e uma nação santa" (Ex 19,4-6). E o povo respondeu
"Faremos tudo o que Javé mandou" (Ex 19,8).
Eles se comprometeram a observar em tudo a lei de Deus (Ex
24,3-8). Esta era a vocação que receberam e assumiram solenemente. A
observância das cláusulas da Aliança era a condição para o povo poder continuar
a ser o povo de Deus. Não observando os mandamentos, eles se condenariam a si
mesmos à escravidão. Mas a experiência foi muito dolorosa. Enganado pela
ideologia da monarquia e desviado pela própria fraqueza, o povo não deu conta
de observar os Mandamentos da Lei de Deus. Diz o salmo: “Por quarenta anos
aquela geração me desgostou. Então eu disse: É um povo de coração transviado
que não reconhece os meus caminhos” (Sl 95,10). A transgressão da Lei de Deus
trouxe consigo a quebra da aliança e a desarticulação da convivência, tanto
familiar como social.
No século VII aC, época do rei Josias, tentaram uma reforma
para levar o povo de volta à sua vocação como Povo de Deus e, assim, evitar a
desintegração total. Esta reforma, chamada Deuteronomista,
colocava o povo diante da escolha: bênção ou maldição, vida ou morte. É como se
dissesse: “Agora vai depender só de vocês! Se observarem a Lei, terão a bênção.
Se não observarem terão a maldição” (cf. Dt 28,1-3. 15-16).
A reforma não adiantou. Os Mandamentos não foram
observadas. As terríveis ameaças de maldição e de exclusão, descritas nos
livros do Deuteronômio (Dt 28,15-44) e do Levítico (Lv 26,14-38), se
realizaram. Tudo foi destruído pelo exército do rei da Babilônia. O povo se
sentia como amaldiçoado e excluído pelo próprio Deus (Is 49,14). Para a
maioria, o cativeiro era a prova trágica de que tinham escolhido a morte e não
a vida. Fracassou a Aliança! Copo quebrado em mil pedaços não tem conserto!
Dentro do povo estava destruída a raiz da fé. Deus desapareceu da vida do povo.
A maioria largou tudo e adotou a religião do império.
Uma reforma que só insiste na observância da Lei, nasce de
uma raiz falsa, pois desconhece a misericórdia de Deus. Na hora do fracasso da
aliança (que de fato ocorreu), ela não oferece nenhuma esperança de se poder
refazer a amizade com Deus. Em vez de levar à justiça, leva ao desespero. O
tiro saiu pela culatra.
2. A redescoberta
da gratuidade de Deus na natureza
Ainda em Jerusalém, diante daquele desespero generalizado
causado pela iminente destruição do Templo e da cidade por Nabucodonosor,
Jeremias dizia: “Temos muito motivo de esperança!” -“Qual?” - “O sol vai nascer amanhã!” (cf. Jr
31,35-36). Jeremias redescobre a presença de Deus não na história, mas na
natureza. A certeza do nascer do
sol não depende da observância da lei, mas está impressa na lógica da criação.
É pura gratuidade, expressão do bem-querer do Deus Criador. É certeza que não
falha. Nossa fraqueza pode levar-nos a romper com Deus (como de fato
aconteceu), mas Deus não rompe conosco, pois cada manhã, através da seqüência
dos dias e das noites, ele nos fala ao coração e diz: “Como é certo que eu
criei o dia e a noite e estabeleci as leis do céu e da terra, também é certo
que não rejeitarei a descendência de Jacó e de meu servo Davi. Quando essas
leis falharem diante de mim - oráculo de Javé - então o povo de Israel também
deixará de ser diante de mim uma nação para sempre” (Jr 33,25-26; cf. 31,36).
Esta nova maneira de olhar a natureza modificou os olhos e
abriu um novo horizonte. “Deus nos amou primeiro!”, dirá São João mais tarde
(1Jo 4,19). A certeza da presença amorosa de Deus para além do fracasso da
observância provocou uma busca renovada dos sinais de Deus na natureza que nos
envolve e da qual depende toda a nossa vida: as chuvas, as plantas, as fases da
lua, o sol, as estações do ano, as sementes, etc. Tudo tornou-se sinal da
presença gratuita de Deus.
Aos poucos, Javé, o Deus libertador que no êxodo entregou a
Lei ao povo e concluiu com ele uma aliança, começa a ser experimentado como o
Deus Criador do Universo; e o Deus Criador do Universo vai tomando o rosto de Javé,
o Deus libertador e familiar do êxodo. História e Criação se aproximam. Nos
dois transparecem os traços do rosto de Javé, o Deus do povo, Deus libertador e
criador, Deus Pai, Mãe, Marido
e Irmão mais velho.
3. A descoberta
dos Dez Mandamentos da Criação
Assim, ao lado da atenção dada às Dez Palavras (Dez
Mandamentos) que estão na origem da Aliança, o povo começa a dar maior atenção
às palavras divinas que estão na origem das criaturas, e descobre que lá também
existem dez palavras. São as Dez Palavras ou os Dez Mandamentos da Criação. O
autor que fez a redação final da narrativa da Criação (Gn 1,1-2,4ª) teve a
preocupação em descrever toda a ação criadora de Deus por meio de exatamente
Dez Palavras. Na narrativa aparece dez vezes a expressão “e Deus disse”:
1. Gn 1,3 E Deus disse: haja luz
2. Gn 1,6 E Deus disse: haja firmamento
3. Gn 1,9 E Deus disse: as águas se juntem e apareça o continente
4. Gn 1,11 E Deus disse: a terra produz verde
5. Gn 1,14 E Deus disse: haja luzeiros
6. Gn 1,20 E Deus disse: as águas produzam seres vivos
7. Gn 1,24 E Deus disse: que a terra produz seres vivos
8. Gn 1,26 E Deus disse: façamos o ser humano
9. Gn 1,28 E Deus disse: sejam fecundos
10. Gn 1,29 E Deus disse: dou as ervas para vocês comer.
E Deus disse
E Deus disse
~yhiªl{a/ rm,aYOæw:
A Lei de Deus entregue ao povo no Monte Sinai tem no seu
centro as dez palavras divinas da aliança. Da mesma maneira, a narrativa da
Criação tem no seu centro dez palavras divinas. Assim como fez para o seu povo,
Deus fez para as criaturas todas: fixou para elas “uma lei que jamais passará” (Sl 148,6). Dez vezes Deus falou e dez
vezes as coisas começaram a existir. Falou: Luz!, e a luz começou a existir. Falou: Terra!, e a terra apareceu. Gritou os nomes
das estrelas, e elas começaram o seu percurso no firmamento. “Ele diz e a coisa
acontece, ele ordena e ela se afirma” (Sl 33,9). A harmonia do cosmo que vence
a ameaça do caos é fruto da obediência das criaturas aos Dez Mandamentos da
Criação.
O povo não observou a Lei da Aliança. Por isso veio a
desordem do cativeiro. As criaturas, ao contrário, sempre observam a Lei da
Criação. Por isso existe a Ordem do cosmo. No Pai-Nosso Jesus dirá: “Seja feita a vossa vontade na
terra assim como é feita no céu”. Jesus pede que nós possamos observar a
Lei da Aliança com a mesma perfeição com que o sol e as estrelas do céu
observam a Lei da Criação. Na ordem do universo descobrimos como realizar nossa
vocação.
4. A vocação
do ser humano
Temos dois decálogos: o decálogo da criação e o decálogo da
aliança. O decálogo da criação descreve a ação de Deus, o decálogo da aliança
descreve a resposta do ser humano. O decálogo da criação já existia muito antes
do decálogo da aliança. Existia desde a criação do mundo e era visível na ordem
do cosmo, mas a sua existência só foi descoberta, quando a observância do
decálogo da aliança entrou em colapso e criou o impasse do cativeiro.
A descoberta do decálogo da criação foi o resultado da
teimosia da fé dos pequenos, de homens e mulheres como Oséias e Gomer,
Jeremias, os discípulos e discípulas de Isaías e tantos outros, pais e mães de
família, que continuavam na busca do Deus criador, cuja promessa de vida
ultrapassa a nossa observância.
A total gratuidade da presença universal de Deus criador
enche de esperança os seres humanos no meio da sua fraqueza. A bondade imensa
de Deus, expressa na criação e que faz chover sobre bons e maus (Mt 5,45), deu
coragem ao povo do cativeiro para recomeçar com garra a observância da lei de
Deus. Agora, eles observam a lei da aliança, não mais para poder merecer a salvação, e sim para poder agradecer e retribuir a imensa bondade com que
Deus os amou primeiro e cujo amor não depende da observância da lei. Eles sabem
que nada nem mesmo o fracasso pode separá-los do amor de Deus (Is 40,1-2ª; 41,9-10.13-14; 43,1-5; 44,2;
46,3-4; 49,13-16; 54,7-8; etc.)
A fé no Deus Criador abriu um horizonte, cujo alcance para
a vida só se compara com o horizonte que a ressurreição de Jesus abriu para os
discípulos confrontados com a barreira intransponível da morte. A descoberta do
decálogo da Criação é como se fosse um fundamento novo colocado debaixo de um
prédio que ameaçava cair por falta de observância da parte dos engenheiros e
operários. Você não vê o fundamento novo, pois está debaixo do chão, mas você
sabe que ele existe, pois o prédio pode até balançar, mas não cai. A fé na
gratuidade da presença universal de Deus torna-se a infra-estrutura da
observância dos mandamentos.
5. Homem e mulher: imagem e semelhança de Deus
Chegando o momento da criação do ser humano, a narrativa da
criação faz uma parada e muda o modo de falar. Até agora, ele informava sobre a
ação criadora de Deus. Agora, com uma certa solenidade, ele apresenta o próprio
Deus falando:
"Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele
domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras
e todos os répteis que rastejam sobre a terra". E Deus criou o homem à sua
imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher. E Deus os
abençoou e lhes disse: "Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam
a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que
rastejam sobre a terra". (Gn 1,26-28)
Por este modo diferente de falar, o autor está sugerindo
que está chegando ao ponto alto da ação criadora. Nesta sua maneira de falar,
ele acentua os seguintes aspectos:
(1) Afirma a dignidade do ser humano, pois nele existe algo
de divino. Ele é feito à
imagem e semelhança de Deus. Não são os animais, nem o rei Nabucodonosor,
nem os poderosos que são a imagem de Deus. Mas sim o ser humano, enquanto humano, é a imagem de Deus, o representante de
Deus no meio da criação.
(2) Afirma a igualdade entre homem e mulher, ambos são
imagem de Deus. Ou melhor, não é só o homem, nem só a mulher, mas ambos juntos
convivendo em harmonia são imagem de Deus. O livro do Eclesiástico faz o
seguinte comentário: “Todas as coisas existem aos pares, uma diante da outra, e
Ele não fez nada incompleto. Uma coisa completa a bondade da outra, e ninguém
se cansa de contemplar a glória de Deus”. (Eclo 42,24-25).
(3) Afirma a superioridade do ser humano frente às outras
criaturas, pois ele pode dominar sobre todas elas. Este domínio não
significa que ele recebe carta
branca para fazer o que quiser nem se trata de uma dominação que usa a terra
como mercadoria ou como objeto mudo e sem vida. Mas significa que ele deve imitar a
maneira como Deus exerce o seu domínio sobre a criação. Deus domina o universo coordenando
tudo numa harmonia admirável, preservando
a ordem que favorece a vida e mantendo afastado o caos que ameaça tudo de
morte: o caos do assassinato, da vingança, da corrupção, da exploração. O domínio que o ser humano recebe deve
promover o crescimento da ordem e contribuir para o louvor universal ao
Criador.
Em seguida, aparece a bênção da vida. Todas as coisas são criadas, mas só a
vida recebe uma bênção. Abençoar é desejar o bem para alguém. É o contrário de amaldiçoar. A vida recebeu de
Deus uma bênção, uma bem-dição.
Esta palavra criadora desejando o bem à vida é mais forte do que a morte que
deseja o mal. É nesta bênção ou bem-dição que está a raiz da nossa fé na Vida
como dom de Deus, fé que foi crescendo lentamente na alma do povo de Deus, ao
longo dos séculos, até desabrochar plenamente na ressurreição de Jesus. Esta fé
é a expressão da convicção de que a vida
plena, que vem de Deus e que
os exilados estavam buscando, não pode acabar nunca. Esta esperança já se
expressava na oração do salmo bem antes da ressurreição de Jesus: “Não me
abandonarás no túmulo, nem deixarás o teu fiel ver a sepultura. Tu me ensinarás
o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença, e de delícias à tua
direita, para sempre” (Sl 16,10-11).
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Perguntas para ajudar na reflexão e na assimilação do assunto: 1. Qual o ponto que mais chamou a sua atenção nesta reflexão sobre a vocação de todos nós como seres humanos? Por que?
2. Depois do fracasso da observância da Aliança, o povo de Deus começou a observar a natureza com outros olhos. Hoje, diante do fracasso evidente do sistema neoliberal que só quer explorar os recursos da natureza e que ameaça a sobrevivência da vida, qual deveria ser nossa nova maneira de olhar a natureza e os recursos da natureza? Por que?
CESEP, CURSO DO VERÃO, 14 a 16 de janeiro de 2008
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