Pe. Luís Corrêa Lima sj
Este assunto é muito importante devido ao grande número de
pessoas separadas e divorciadas. Este número também é grande entre cristãos
católicos, muitos dos quais têm formação e princípios cristãos, prática
religiosa e um ardente desejo de participar dos sacramentos.
Sobre este tema há muitas publicações de teólogos, pastores,
especialistas em
Direito Canônico e, sobretudo, pronunciamentos do Papa e dos
bispos. O assunto é controvertido e não pretendemos resolvê-lo, mas mostrar
como se coloca a questão e dar
elementos para o discernimento dos católicos envolvidos nessa situação.
Desde o princípio a Escritura afirma o valor da união conjugal e
da família. No relato da criação da humanidade se lê que Deus fez o homem à sua
imagem e semelhança, o fez homem e mulher, e lhes disse:"crescei-vos e
multiplicai-vos; enchei a terra..."(Gn 1,26-28). Da união do homem e
da mulher se diz: "serão os dois uma só carne"(Gn 2,24).
O matrimônio é santificado e a sua fecundidade é uma bênção divina. Ele se torna símbolo do amor de Deus pelo seu povo eleito,
Israel. A relação de Deus com Israel é compreendida como uma aliança, e a sua
representação é o matrimônio. Israel é a esposa
de Javé (Is 62, 4-5). Por
conseguinte, o culto aos deuses estrangeiros é infidelidade à aliança e adultério (Ez 16; Os 2).
Entretanto, o problema do divórcio surgiu. Se depois do casamento, a mulher não mais encontra "graça aos olhos do marido", ele podia despedi-la de casa, fazendo uma ata de divórcio (Dt 24,1). Daí em diante, ele podia se casar novamente, e ela também. Somente o marido podia tomar a iniciativa. A sociedade era patriarcal.
Entretanto, o problema do divórcio surgiu. Se depois do casamento, a mulher não mais encontra "graça aos olhos do marido", ele podia despedi-la de casa, fazendo uma ata de divórcio (Dt 24,1). Daí em diante, ele podia se casar novamente, e ela também. Somente o marido podia tomar a iniciativa. A sociedade era patriarcal.
Uma questão ficava pendente: o
que é exatamente "não encontrar graça aos olhos do marido"? Os rabinos se dividiam na
interpretação da Torá (lei de Moisés). Esta discussão era
bastante viva no tempo de Jesus. Alguns rabinos (a escola de Shammai)
restringiam a cláusula ao adultério somente. Outros
(a escola de Hillel) espandiam a cláusula aos motivos mais fúteis (se a mulher
deixasse de ser bela, tivesse deixado queimar a comida, tivesse verrugas ou mau
hálito...) O divórcio fragilizava muito a mulher, pois a sociedade era
masculina, e ela dependia do homem. A
mulher despedida pelo homem estava exposta à miséria, à mendicância e à
prostituição. Tal era a situação das viúvas, que por não terem marido, tinham
dificuldade de sobreviver, pois não havia pensão do Estado. Na pregação social dos profetas se
defendia o órfão, o estrangeiro e a viúva, porque eram os grupos sociais mais
fragilizados, mais expostos à miséria e à opressão.
Estes dados são importantes para entendermos o contexto que
Jesus encontrou, o problema com o qual se deparou, e o alcance do seu
ensinamento.A palavra de Jesus não é descontextualizada nem a-histórica. Ele não paira sobre a história, mas se
insere nela e anuncia o Reino de Deus.
O Novo Testamento (NT) nos apresenta Jesus como plenitude da
revelação divina e cumprimento das promessas feitas à Israel. Ele é o Messias, o Senhor, o caminho definitivo da salvação. Ele é o critério definitivo de
compreensão da Torá (lei) e dos profetas. Ele é o Senhor
da criação e o Senhor da história. Entretanto a sua manifestação se faz dentro
da história e tem suas marcas.
A moral de Cristo está alicerçada no amor ao próximo, critério de
toda a lei e da relação com Deus: "nisto
conhecerão que são meus discípulos que vos ameis uns aos outros" (Jo
13,35). Todos os mandamentos se
resumem neste: amar ao próximo como a si mesmo. "Quem ama o próximo
cumpriu a lei" (Rm 13,8-10). Os
outros mandamentos só tem valor se forem uma mediação deste amor. Se não,
não tem valor para o cristão. A Lei foi feita para o homem e não o homem para a
Lei (Mc 2,27-28). Ela não é um
capricho divino para oprimir o homem, mas um caminho para salvá-lo e
dignificá-lo.
O NT santifica o matrimônio, seguindo a linha do Antigo. O matrimônio é
sinal do amor de Cristo pela Igreja (Ef 5), da união do Senhor e do novo
Israel. A novidade de Jesus é
a afirmação da indissolubilidade do matrimônio e uma proibição categórica do divórcio
(Mt 19,1-12; Mc 10,1-12; Lc 16,18; Rm 7,2-3; 1Cor 7,10-11). A sua referência
principal é justamente o relato da criação, onde se diz que o homem e a mulher
se unem e se tornam "uma só carne". E o que Deus uniu, o homem
não deve separar.
Os textos citados têm uma convergência que mostra um ensinamento inequívoco do Senhor e
também a prática da Igreja primitiva, dos primeiros cristãos. Os textos do NT
são memória de Jesus e ao mesmo tempo catequese da comunidade, que reflete a
sua compreensão e a sua prática.
Sobre o divórcio, há duas
exceções no NT: uma está no Evangelho de Mateus (5,32; 19,9) e outra em
Paulo (1Cor 7,12-16). Em Mateus está dito: "todo aquele que repudiar a
sua mulher, exceto por motivo de fornicação, e desposar uma outra, comete
adultério". Isto revela
a interpretação de Mateus e sua comunidade sobre o ensinamento de Jesus. O matrimônio é indissolúvel, sim.
Ele realiza a vontade do Criador. No entanto, ele também é santo. E o adultério
e o comportamento gravemente imoral quebram a santidade e a unidade do
matrimônio. Marido e mulher estão unidos para sempre, mas somente no amor e na
fidelidade. Quando uma parte
escolhe o caminho da infidelidade, a outra pode e deve separar-se.
Na verdade, Mateus
atenua o radicalismo de Jesus. Isto pode ser visto também em outra
passagem, no Evangelho de Lucas, onde Jesus diz: "Se alguém vem a mim,
mas não odeia pai e mãe, mulher e filhos, irmãos e irmãs, e até a si mesmo, não
pode ser meu discípulo" (14,26). O
Evangelho de Mateus coloca da seguinte maneira a mesma afirmação: "Quem
ama o pai ou a mãe mais que a mim, não é digno de mim. Quem ama o filho ou a filha mais que a
mim, não é digno de mim" (10,37). Em
Mateus a exigência de Jesus está colocada de maneira mais razoável e menos
chocante. Isto acontece também em
relação ao divórcio: Mateus
atenua o radicalismo de Jesus e torna mais razoável a sua exigencia (Cf. nota "Matrimônio e
divócio na Igreja de Mateus" in: BARBAGLIO,G. et alli, Os Evangelhos (I), São Paulo,
Loyola, 1990, 295-298).
O NT é inspirado pelo Espírito Santo, portanto Mateus tem
autoridade para isso.E em tudo isso, é possível ver a gênese da Igreja
primitiva, que vai se apropriando do ensinamento de Jesus de modo criativo,
adaptando-o às circunstâncias, re-interpretando a mensagem diante de uma nova
situação, mantendo a fidelidade ao Espírito de Cristo e ao núcleo de sua
mensagem.Cristo e o cristianismo não são fundamentalistas. A fidelidade
a Deus não é seguir um código de leis imutáveis ao pé da letra, mas amar e
seguir uma pessoa que nos mostra que a lei é feita para o homem, e que a
misericórdia tem prioridade na conduta humana e na relação com Deus. A re-interpretação criativa da lei
faz parte da mensagem de Cristo. A
fidelidade intransigente e opressora não são o Espírito do Evangelho.
A outra exceção é a de Paulo (1Cor 7,12-16). Trata-se de casamentos mistos, em que
um dos cônjuges é convertido, e o outro não; de modo que um é cristão, e o
outro não. Se o cônjuge não-cristão consente em viver com o cônjuge cristão,
este não deve repudiá-lo. Se o cônjuge não-cristão quer se separar, o cônjuge
cristão pode aceitar, pois neste caso "não estão ligados". A razão é que "foi para viver
em paz que Deus nos chamou". Critério de Paulo: Deus nos chamou para viver em
paz . Este é um critério inspirador
para pastoral matrimonial - possibilitar às pessoas viverem em paz. O NT foi determinante na prática da
Igreja ao longo de sua história.
A Igreja sempre afirmou a indissolubilidade do matrimônio como
mandamento do Senhor, expresso na Sagrada Escritura. Entretanto há uma distinção entre
doutrina e aplicação prática, entre princípio e ação pastoral. A ação pastoral deve levar em conta não
somente a norma, mas também as circunstâncias concretas de pessoas e
comunidades.
As exceções à indissolubilidade também tiveram lugar na história
da Igreja. Elas se encontram em alguns dos
chamados Padres da Igreja (teólogos cristãos dos primeiros séculos), como Santo
Ambrósio, São João Crisóstomo e São Gregório Nazianzeno.
No Séc.VIII, S.
Bonifácio, bispo na Alemanha, consultou Roma sobre o caso de um homem
casado que tinha uma mulher doente mental e estava constrangido a viver em
continência sexual. A consulta foi se ele podia ter uma
segunda mulher, se chegasse à conclusão de que era impossível viver em
continência. Aresposta
de Roma, no pontificado de Gregório II, foi que sim, lembrando porém o
dever do casado de amparar a mulher rejeitada.
No segundo milênio, a cristandade foi tomando caminhos
diferentes no Oriente e no Ocidente. O Ocidente, marcado pela mentalidade
latina, bastante jurídica, foi disciplinando o casamento no direito
eclesiástico. No século XII,
surgiu o rito do matrimônio tal como nós conhecemos. Anteriormente, as pessoas se casavam
segundo o costume de suas respectivas tradições.
Ainda hoje há uma exceção ao rito do matrimônio: nos lugares
onde não há sacerdote nem ministro do matrimônio, ou há pouca assistência, onde
ele vá menos de uma vez por mês, duas pessoas podem se unir em matrimônio sem a
sua presença, e esta união matrimônio é valida perante a Igreja como sacramento
(Código de Direito Canônico, Cân. 1116). É uma mostra de que o sacramento do matrimônio não está
no rito, mas na vida. O rito
é uma celebração daquilo que se vive, não uma necessidade intrínseca do
sacramento.O sacramento do matrimônio não é um fluído invisível que emana das mãos do sacerdote no
instante da celebração do rito, mas é uma união de duas pessoas que se entregam
uma a outra; e celebram esta união na fé e na presença da comunidade cristã,
pedindo a bênção de Deus.
A cristandade oriental, ao contrário da mentalidade jurídica do
ocidente, desenvolveu o princípio
da economia. Consiste em que Deus é um bom administrador (ecônomo)
e a Igreja deve exercer a
misericórdia nos casos
limites em que se esgotam todos os outros recursos. A Igreja deve ter a atitude
do bom pastor. Aplicando-se este princípio à questão do divórcio, se aceitam exceções à
indissolubilidade e se celebra um segundo matrimônio.
Pertencem à cristandade oriental as Igrejas Ortodoxas e a Igreja
Católica de rito oriental. No
século XVI, a Igreja Católica realizou o concílio de Trento. O seu principal
objetivo era reagir à Reforma protestante, considerada heresia. Dentre as heresias da Reforma estava a contestação dos
sacramentos e da autoridade da Igreja. Os
protestantes aceitavam o divórcio em certas circunstâncias.
A reação católica foi de afirmar a autoridade da Igreja, afirmar
o valor dos sacramentos e condenar as posições dos protestantes. O Concílio afirmou a
indissolubilidade do matrimônio e quis condenar o divórcio. No entanto, alguns de seus membros
lembraram que esta condenação não podia ir de encontro à pratica das Igrejas
Orientais Católicas, que já tinham longa tradição de tolerância e sempre foram
ligadas a Roma. O texto foi modificado e a sua forma final foi uma afirmação da
doutrina da indissolubilidade, sem condenar a prática das Igrejas Orientais,
que mantiveram o seu costume. Isto
mostra que a doutrina da
Igreja sempre foi de afirmação da indissolubilidade, mas também que a sua ação
pastoral sempre teve bolsões de tolerância.
O magistério e o debate contemporâneo. O
magistério é o ensinamento oficial da Igreja. O magistério é exercido pelo Papa
e pelos bispos católicos. O Papa João Paulo ll escreveu uma carta pastoral
sobre a família, em 1981, que se chama Familiaris
consortio (Comunidade ou
associação familiar). Aí são tratados também os problemas de separação e
divórcio.
Há muitos pontos importantes que poucos católicos conhecem. Muitos acham que a separação, por
si só, é um pecado que impede a participação nos sacramentos. Não é. O papa diz que "motivos
diversos, quais incompreensões recíprocas, incapacidade de abertura a relações
interpessoais, etc..., podem conduzir dolorosamente o matrimônio válido a uma
fratura muitas vezes irreparável. Obviamente que a separação deve ser
considerada remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as
tentativas razoáveis". O papa reconhece portanto, que mesmo um
matrimônio válido pode sofrer "fraturas irreparáveis"
que justifiquem a separação. A
separação não é obstáculo a participação dos sacramentos (n.83). É muito importante que os fiéis católicos
saibam disto, pois muitos casos de afastamento da Igreja se devem à pura
ignorância. E há também clérigos
que não conhecem o ensinamento da Igreja e contribuem para o afastamento dos
fiéis.
Aos divorciados que contraem nova união, o papa dirige uma
palavra de acolhida e conforto: "exorto vivamente os pastores e a
inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade
solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor
devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a
Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a
incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da
justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e a obras de
penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os,
mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança"(n.84). Trata-se de uma grande abertura, de
uma palavra bastante acolhedora que contrasta com o discurso moralista e
condenatório que muitas vezes já presenciamos em ambientes católicos e nos
púlpitos.
Quanto à participação nos sacramentos, ela não é permitida aos
divorciados que contraem nova união nem aos seus cônjuges. O papa considera que este estado de
vida contradiz a união de amor entre Cristo e a Igreja, significada na
Eucaristia. Considera também que
se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e
confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio.
Este posicionamento do pontífice fez avançar bastante a posição
da Igreja e sua prática pastoral, no entanto ainda restam problemas. Há muitas pessoas de fé profunda e
de grande generosidade que sofrem muito por não poderem participar da
Eucaristia. Algumas alternativas se apresentam.
O casamento na Igreja é regulado por uma legislação eclesiástica
chamada Direito Canônico. O Código de Direito Canônico prevê casos em que um matrimônio pode
ser declarado nulo. Tecnicamente
não é uma anulação do casamento, mas sim uma declaração de nulidade, ou
seja, juridicamente o matrimônio nunca existiu. Há uma série de razões que
tornam nulo o casamento religioso. Elas podem ser agrupadas em três grupos: as falhas do consentimento, os impedimentos dirimentes e a falta
da forma canônica na sua
celebração. Muitas incompatibilidades radicais da vida em comum, que trazem
separação, podem ser enquadradas nas causas de nulidade. Muitas imaturidades
dos cônjuges também.
As causas de nulidade matrimonial são tantas que quase todas as
separações conjugais estão ligadas a elas. É possível ver em quase todas as
separações indícios de nulidade. Especialistas
em direito canônico dizem que 80
a 95 por cento dos matrimônios são nulos. É
um número impressionante, mas real. Mesmo
que posteriormente muitos dêem certo, a sua consumação não se deu na época do
casamento, mas muito depois.
Para iniciar o processo de nulidade matrimonial, um dos conjunges deve procurar o tribunal eclesiástico da sua
diocese. O processo dura em média
um ano. Ao obterem a declaração de nulidade, os ex-cônjuges podem se casar novamente na Igreja. Juridicamente
são solteiros. Maiores
informações sobre este assunto podem ser encontradas no livro de Jesus Hortal: Casamentos que nunca deveriam ter
existido (São Paulo, Loyola,
1987). É um livro breve e
elucidador. O título, entretanto, é questionável. Muitos problemas e
incompatibilidades da vida conjugal só podem ser avaliados com o passar do
tempo, e não a priori. Supor que tais casamentos ‘nunca
deveriam ter existido’, nós parece um certo exagero, além de sugerir que os
filhos (quando houver) ‘nunca deveriam ter nascido’.
A solução canônica não resolve todos os problemas no campo das
separações. Se
todos os casais separados procurassem o tribunal eclesiástico em busca da
nulidade, não haveria como atender a todos os casos. Além do mais, há muitas
separações dolorosas que já enfrentaram o processo civil. Submetê-las a um novo
processo judiciário, a mais depoimentos e interrogatórios, pode causar mais
sofrimentos a pessoas já bastante machucadas. Há feridas que ainda dóem muito e
não convém mexer novamente. São situações em que as circunstâncias pastorais
desaconselham. Alguns
processos podem demorar muitos anos e complicar a vida dos separados. Há
ainda casos em que é impossível se provar a nulidade de um matrimônio. Diante
disso, é necessário pensar em novas
alternativas.
O Pe. Bernard Häring, redentorista alemão e renomado teólogo
moral, abordou o problema. Ele foi um dos grandes renovadores da moral
católica. Nos anos 50 escreveu A
Lei de Cristo, considerada um divisor de águas. Anos depois, colaborou
no concílio Vaticano II. No final
de sua vida, já enfermo, resolveu escrever um opúsculo sobre a questão dos
divorciados e os sacramentos, com a intenção de lhes dirigir uma palavra de
simpatia e de encorajamento. O livro se chama: Existe saída? Para uma pastoral
dos divorciados (São
Paulo, Loyola, 1990). Ele escreve como "uma preparação
imediata para a morte, com firme confiança na promessa do senhor:
'Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia' (Mt
5,7)".
Um dos pontos importantes é a indissolubilidade do matrimônio
entendida como ‘preceito’. Häring
afirma que há dois tipos de preceito: o
preceito-meta e o preceito-limite. O preceito-meta é um ideal, e o
preceito-limite é a lei. Ocasamento indissolúvel é Evangelho
(Boa-Nova), está no nível da graça, é dom de Deus. É um preceito-meta, um ideal que
nem todos são capazes de alcançar; e não se pode realizá-lo por força de
lei, seja civil ou canônica.
Diante de separações em que é muito difícil e complexo se obter
a nulidade, Häring recomenda que, em
caso de nova união, os fiéis podem receber os sacramentos, desde que não haja
escândalo na comunidade eclesial. O novo casal deve expor a sua situação a
um sacerdote experimentado nestas questões, que possa recomendar a sua admissão
aos sacramentos.
O magistério da Igreja é também o ensinamento dos bispos, que
deve levar em conta as circunstâncias das Igrejas locais, como a diversidade de
mentalidades e de condicionamentos culturais. Recentemente os bispos alemães do
Reno Superior publicaram uma carta
pastoral sobre os divorciados recasados(julho de 1993. Tradução: Sedoc 242 (1994), 423-438). Afirmam que se pode conceder a eles
a comunhão, desde que observadas certas condições, como a boa consciência da
pessoa e a certeza de que não se causará escândalo na comunidade eclesial. Basicamente assumem a mesma posição de
Häring. Um dos signatários da
carta é dom Karl Lehmann, presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha.
Há um número significativo de bispos, párocos e comunidades
eclesiais em todo o mundo que adotam esta mesma posição. Ao que tudo
indica, em muitas comunidades e ambientes eclesiais, a comunhão de divorciados
recasados não causa escândalo; pelo contrário, é vista até com simpatia por
muitos fiéis.
É tarefa da Igreja local buscar a inculturação da fé, isto é,
expressá-la numa cultura diferente. Isto
exige um trabalho de re-interpretação do conteúdo da fé e suas incidências
morais, levando em conta um novo ambiente cultural. Esta inculturação conduz a novas
formas de expressão, que fazem sentido para aqueles que participam do contexto
cultural. Este é um dos grandes temas da pregação do Papa João Paulo II - a
necessidade de inculturação. Não
é abandono da fé, mas uma adaptação que é fiel ao essencial no Evangelho.
Nós vivemos numa nova cultura, que muitos chamam ‘pós-moderna’. Ela se diferencia bastante do passado
recente, de duas gerações anteriores. Tais
mudanças culturais também exigem o trabalho de inculturação da fé, que passa
pela moral sexual e matrimonial. Este trabalho implica reconstrução e a
preservação da família num mundo que mudou, que não volta mais a ser o que era. Os cristãos podem desempenhar aí um
papel fundamental, com discernimento e sensibilidade para os sinais dos tempos.
Karl Rahner, um dos grandes teólogos do século XX, nos dá uma
importante contribuição neste debate, trabalhando o conceito de cristão adulto. O que significa ser cristão adulto? A maioridade é a auto-determinação
da pessoa. Existe uma maioridade civil, profissional, afetiva, familiar,
política, etc... A
pessoa adulta muitas vezes deve tomar decisões em situações complexas, onde as
normas gerais da sociedade e das instituições não decidem por ela e nem prevêem
de maneira adequada todas as circunstância. As normas podem servir como
referência, mas não substituem o juízo e a decisão pessoal. Na vida cristã, o fiel também
encontra situações em que deve tomar decisões sérias, em que outros não podem
decidir por ele, nem mesmo a Igreja. Aí
o fiel deve ser adulto também como cristão, colocando-se diante de Deus e de
sua consciência, escolhendo o que for melhor e assumindo as consequências.
Para Rahner, se alguém sabe, diante de Deus e de sua própria
consciência examinada com honradez, que seu matrimônio é inválido também
segundo a doutrina geral da Igreja, mas não pode demostrá-lo diante do foro
eclesiástico enão obtem a autorização para contrair um novo matrimônio,
então deve casar-se somente no civil e está justificado também diante de Deus (RAHNER,
Karl, "El cristiano mayor de edad" in: Razón y Fe (1/1982), 43). Ser adulto às vezes é se encontrar
só, sem o respaldo dos outros. Ser
cristão adulto é se expor à essa solidão, sem o respaldo eclesial desejado, mas
é olhar para Deus e para o mundo com responsabilidade.
Nesta comunicação, não pretendemos resolver o problema dos
divorciados na Igreja, nem tomar partido nas diversas posições e nem dizer a
última palavra sobre a questão. O
que desejamos é ajudar a esclarecer a consciência dos fiéis e mostrar como o problema se coloca na
Igreja. Dando elementos para a reflexão dos fiéis, podemos favorecer a ação do
Espírito de Deus, que sopra onde quer, conduzindo o povo santo e pecador dos
caminhos tortuosos da história rumo à casa do Pai.
Uma pergunta: O que você achou deste artigo?
Pe. J. Ramón F. de la
Cigoña sj
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