No ano passado, ao escrever sobre
o cinquentenário da Mater et Magistra, lembrei que o papa João XXIII, definiu
como o melhor método para a formação nos princípios da justiça social aquele
que depois foi consagrado pela Igreja latino-americana: conhecer a situação
concreta, examinar essa realidade à luz da Palavra e da doutrina da Igreja e,
por fim, agir "de acordo com as circunstâncias de tempo e de lugar” (MM,
236).
Lembrava ainda que o "papa
buono”, neste mesmo parágrafo da encíclica definia tal método como ver, julgar,
agir. Salientava que, segundo o papa, é necessário "que os jovens, não só
conheçam esse método, mas o empreguem, concretamente, na medida do possível, a
fim de que os princípios adquiridos não permaneçam para eles no campo das ideias
abstratas, mas sejam traduzidos na prática” (MM, 237).
Em meu artigo afirmava que um dos
sinais mais evidentes do inverno tenebroso da atual Igreja, especialmente aqui
na América Latina, é o aborto progressivo deste método. Documentos recentes dos
episcopados e das Igrejas locais revelam a intenção premeditada de enterrar
definitivamente este precioso legado consagrado por um documento tão valioso do
Magistério da Igreja.
O sepultamento do método
ver-julgar-agir começa aqui na América Latina com as Conclusões de Santo
Domingo, no início da década de 1990. Daí para cá os documentos oficiais foram
abandonando-o progressivamente. O mais recente exemplo disso pode ser
encontrado nas Diretrizes da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, aprovadas
em maio passado.
O abandono do método
ver-julgar-agir revela a pendência clara da Igreja para a direita. Por se
tornar cada vez mais conservadora e fundamentalista, ela rejeita todo método
que possa criar nos cristãos e nas cristãs o espírito crítico e a capacidade de
enxergar melhor a realidade e as causas de determinados problemas. Além disso,
revela uma pobreza cada vez maior no campo teológico e um desconhecimento
crescente da pedagogia bíblica.
De fato, se observarmos
atentamente a tradição profética e a prática de Jesus, é possível perceber que
o método utilizado não tem como ponto de partida a teologia, mas a realidade.
Para propor a conversão, a mudança, tanto das pessoas como das estruturas
sociais, os profetas e Jesus não partem de afirmações teológicas substanciais, mas
do que está acontecendo. Após terem mostrado como se encontra a realidade,
fazem o confronto com o que é considerado palavra de Deus e convidam a mudanças
radicais, a reviravoltas.
No que diz respeito aos profetas, os exemplos são numerosos e seria impossível
falar de todos eles. Bastaria lembrar dois episódios que são bem emblemáticos
do método usado pelos profetas. O primeiro é o caso do adultério de Davi (2Sm
12,1-14). O profeta Natan não chega até ele fazendo pregações teológicas ou
recordando as normas da lei mosaica. Começa contando uma história que obriga o
rei a dar de cara com a realidade e com a sua injustiça. Somente depois de o
rei ter caído na real o profeta vai fazer a sua pregação teológica e convidá-lo
a uma atitude de mudança. O outro episódio emblemático é a ação simbólica de
Jeremias que se coloca na porta do Templo e começa a proclamar em voz alta a
lista dos pecados do povo (Jr 7,1-28). Também ele não vai fazer uma pregação
sobre os preceitos da Torá e nem tão pouco sobre quem é Javé. Começa sua ação
levando o povo a perceber a realidade.
Se vamos para a práxis de Jesus,
percebemos a mesma coisa. Ele não é um fariseu e nem um doutor da Lei, que vai
fazendo elucubrações teológicas e citando textos bíblicos, dando aulas de
teologia. De acordo com a maioria dos exegetas, Jesus não tinha grandes
conhecimentos da Torá, uma vez que o estudo da Lei não acontecia no ambiente de
Nazaré, onde ele viveu. O conhecimento bíblico de Jesus era mediano, próprio
dos moradores da Galileia que viviam distantes de Jerusalém, o centro teológico
e cultual da época.
Jesus não sai pela Palestina
fazendo discursos teológicos. Ele se insere no meio do povo e, a partir da
contemplação da realidade, vai ajudando esse mesmo povo a perceber a presença
amorosa de Deus. Não parte de Deus para chegar à realidade, mas parte da
realidade para fazer as pessoas se darem conta do amor misericordioso do Pai.
Começa falando de comida, de bebida, de roupa, das preocupações cotidianas,
convidando os homens e as mulheres a contemplarem a erva do campo e os pássaros
do céu (Mt 6,25-34), e, a partir do concreto, chegar até a providência divina e
à centralidade do Reino de Deus e da sua justiça (Mt 6,33).
Em outras ocasiões, para explicar
como a Palavra age nas pessoas, parte da vida concreta dos lavradores, do
trabalho doméstico das mulheres (Mt 13). Para dizer como deve ser a conexão
entre o discípulo e o Pai, parte da experiência dos trabalhadores na
agricultura, que certamente eram maioria absoluta, senão a totalidade, dos seus
ouvintes (Jo 15,1-6). Para explicar como é o seu cuidado e o cuidado do Pai
para com as pessoas, fala da atividade do pastor, cuidador de ovelhas (Jo
10,1-21).
Portanto, Jesus não se preocupa
em "partir de Deus”, como queriam os fariseus e os legalistas doutores da
Lei, preocupados com as picuinhas religiosas e com as precisões teológicas.
Jesus partia da vida real, concreta, do seu povo. Como bom pedagogo sabia que
esse método funcionava realmente e possibilitava às pessoas compreenderem o que
precisavam compreender para aderir à sua proposta de Reino de Deus. E os
Evangelhos são unânimes em nos mostrar que o método de Jesus funcionou e que o
povo entendeu plenamente a sua mensagem. "E uma grande multidão o escutava
com gosto” (Mc 12,37).
A obsessão em querer "partir de Cristo” revela-se falsa e ideológica.
Falsa porque se afasta da tradição bíblica e da intuição de grandes santos como
João XXIII. Ideológica porque mostra claramente que por trás desse abandono
está a intenção clara de não utilizar um método pastoral que eduque o povo de
Deus, tornando-o sujeito de sua própria libertação. Pretende-se que a fé cristã
funcione como ópio e não como força libertadora e transformadora. Deixando de
lado a realidade, ou camuflando-a com pseudo-afirmações teológicas, se esconde
a verdade e não se permite a libertação que dela viria. A pregação e a
evangelização se tornam "discurso lacunar”: muito palavreado para esconder
aquilo que deveria ser realmente dito.
Infelizmente a atual hierarquia
vai perdendo a sua condição profética e, por isso, perde também a sua
capacidade de evangelizar a partir das situações concretas. O evangelho passa a
ser uma abstração, um falatório que não encontra ressonância em lugar nenhum,
porque não é anunciado dentro das condições reais das pessoas. E nesse contexto
ressoa a palavra profética de Dom Oscar Romero, pronunciada no dia 18 de
fevereiro de 1979: "Os fatos concretos, Deus não os despreza. Querer
pregar sem referir-se à história em que se prega não é pregar o Evangelho.
Muitos gostariam de uma pregação tão espiritualista que deixasse os pecadores
como estão, que não dissesse nada aos idólatras, aos que estão de joelhos
diante do dinheiro e do poder.
Uma pregação que não denuncia as
realidades pecaminosas, no seio das quais se faz a reflexão evangélica, não é
Evangelho”. Por causa disso, como amava repetir Dom Hélder, os atuais
documentos eclesiásticos da América Latina voltam a ser "belas teorias
sobre uma dura realidade”. Ou, como diz Lepargneur, "na prática a teoria é
outra”.
Poucos dias atrás encontrei um padre que acabava de chegar de sua primeira
viagem à Europa. Visitou Roma e vários outros "lugares sagrados” europeus.
Lá o método ver-julgar-agir nunca foi adotado pela Igreja. Mas esse padre
estava aterrorizado com o que viu. Nas igrejas, nas missas, quase ninguém. Só
algumas velhinhas arrastando-se com muita dificuldade. A missa tinha que
terminar na hora exata, pois na hora marcada os filhos ou netos apareciam, mas
apenas para buscar suas mães ou avós.
Isso não me assustou, pois, tendo morado por lá, já conhecia essa situação, a
qual deve ter se agravado nos últimos anos. Porém, este é o futuro de uma
Igreja que voltou a abandonar o cuidado com a realidade, que insiste em fazer
discursos teológicos estéreis, completamente desconectados da situação real do
povo. Esse é o futuro de uma igreja que não quer agir "de acordo com as
circunstâncias de tempo e de lugar” (João XXIII). Se não soubermos substituir
"a santidade de reputação e de fachada pela santidade interior e real, as
criaturas mais conscientes, que têm a maior sede de justiça, que são mais
desconfiadas e reais, correm o risco de perder a fé” (Dom Helder Camara).
Fonte: José Lisboa Moreira de
Oliveira - Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e
Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e
professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR)
da Universidade Católica de Brasília.
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